Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


14-08-2021

Historiadora Isabel Castro Henriques: Lisboa é a cidade mais africana da Europa


“Sou contra a destruição das marcas da história colonial. Lisboa tem várias histórias: silenciar uma é limitar a reflexão”   disse a historiadora Isabel Castro Henriques acaba de publicar um roteiro da Lisboa africana em que explica que, em vez de apagar a história, devemos analisá-la, assumi-la e aprender com os erros. Sobretudo na cidade mais africana do mundo europeu.

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Há cinco décadas que Isabel Castro Henriques estuda a história africana. A historiadora lançou este mês o Roteiro Histórico de uma Lisboa Africana e explica como os africanos, que chegaram como escravos, intervieram na construção social, cultural e económica da cidade que também construíram.                            Depois de ter iniciado os seus estudos na Sorbonne, em França, em 1970, onde estudou o século XV, dedicou-se a descobrir as marcas, escassas e escondidas, desta história. E perceber onde e como começou o preconceito. Esta é a história que agora ajuda a descobrir e revelar – isto, afirma, é mais útil do que destruir ou esconder.

Há quem diga que Lisboa é a cidade mais africana da Europa. Concorda?

leia mais aqui»»  Que será certamente a mais importante da Europa. Por exemplo, Lisboa teve um bairro africano antes de todas as outras, não há outro Bairro como o Mocambo em lado nenhum. Por outro lado, é evidente que Portugal teve um papel central no tráfico negreiro, introduzindo no país milhares de escravos durante os séculos XVI, XVII, XVIII. Isto além dos que iam para o Brasil e dos muitos que nasciam em Portugal, filhos de mães escravas, até 1773, data em que a Lei do Ventre Livre, do Marquês de Pombal, que liberta da escravatura os filhos das mulheres escravas. Lisboa foi, seguida talvez por Sevilha, a cidade europeia que mais população de origem africana recebeu ao longo dos séculos e que mais marcas africanas tem hoje. Desde a segunda metade do século XV. Portanto, nesse aspeto podemos, sim, afirmar que Lisboa é cidade a mais africana da Europa.

E Lisboa assume bem essa identidade? Aquilo que se tem feito hoje e o que procura fazer-se no futuro próximo vai nesse sentido: assumir essa identidade, reconhecer e valorizar essa presença africana na construção, na manutenção e na cultura da cidade. Mas não chega, é necessário fazer muito mais.

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Imagens do Jardim Botânico, antigo Jardim Colonial, em Belém. Foto: Rita Asnone

O que é que quer dizer com “fazer a descolonização da cidade”? É integrar esse reconhecimento de que os africanos e a sua história são parte integrante do tecido lisboeta? O que é que isso quer dizer exatamente?

O conteúdo imediato é o de desconstruir na cidade de Lisboa tudo aquilo que tem que ver com o imaginário da colonização, a que podemos chamar “cultura colonial”. As cidades foram marcadas por todo o período colonial português e descolonizar a cidade será transformar as marcas que existem e são consideradas negativas numa cidade que pretende combater preconceitos, formas discriminatórias e posições racistas e ser uma cidade aberta, multicultural e acolhedora de todos os homens e mulheres de todas as cores e feitios existentes no mundo.                                           Defende a eliminação dessas marcas, como estátuas e monumentos?                                                                        Não. Eu sou contra a destruição das marcas da história colonial. Acredito que a cidade de Lisboa tem várias histórias. Tem uma história romana, árabe, africana – que queremos dar agora a conhecer – e tem uma história colonial, entre várias outras. A história colonial faz parte da identidade portuguesa. E tal como nunca devíamos ter silenciado as outras histórias, não devemos silenciar a história colonial. Silenciar um aspeto da história global é esconder e limitar a reflexão sobre esse tempo violento e problemático, que é fundamental para podermos assumir, ultrapassar, reconhecer os erros e não voltar a cometê-los.                                                                                                     Foi esta uma das perspetivas fundamentais do projeto A Rota do Escravo, da Unesco, que era a de quebrar o silêncio. Quebrar o silêncio da escravatura, facto histórico que, em Portugal, foi marcado por um longo e grave silenciamento. Esconder e silenciar é uma maneira de não aprender com a história, de não a reconhecer e sobretudo de não a ultrapassar e assumir. Eu defendo a construção (e não a destruição) de todas as histórias de Lisboa, em particular aquelas que foram esquecidas, como a história africana da cidade.

Ou seja, seria, por exemplo, manter o que existe, mas acrescentar as tais placas toponímicas, para construir um outro conhecimento histórico de Lisboa – incluindo todas as comunidades que fizeram parte do desenvolvimento da cidade?

Exatamente. O meu trabalho tem sido sempre a construção da história. É evidente que entendo que existem monumentos e estátuas que poderão chocar a sensibilidade dos lisboetas… Nesse caso, retirem-se as estátuas, se estiverem muito expostas, e coloquem-se eventualmente em outros espaços, como os museológicos. Os arquivos e bibliotecas também guardam documentos escritos cheios de violência – e nós não vamos rasgá-los, destruí-los. Antes vamos utilizá-los criticamente.

Portanto é contra a destruição das memórias, mesmo que alguns as achem ofensivas?

Sou contra a destruição e pela preservação. Até para ser possível estudar, interpretar e compreender os fenómenos históricos. Esta é a questão fundamental. Da mesma forma que os alemães não destroem os locais do Holocausto, muito pelo contrário, são exibidos aos turistas, observados e estudados, precisamente para que se veja o que aconteceu e não se repita, Portugal não tem que esconder a história colonial. Ela existiu e temos que a reconhecer. Temos de olhar para os monumentos, um a um, e estudá-los como documentos históricos. A história tem de ser estudada, pensada, refletida.

A entrevista, no Jardim Botânico Tropical. Foto: Rita Ansone

Porque e quando começou a estudar a presença africana em Portugal?

Só a partir do ano 2000 e foi então que me apercebi de uma história desconhecida, silenciada e silenciosa. Deparei-me com grandes dificuldades para encontrar documentos escritos, iconográficos, fontes históricas necessárias à elaboração dessa história. Como sabemos, os africanos vieram para Portugal em meados do século XV, como escravos. Vieram despidos de tudo, considerados “mercadoria”, “coisas” destinadas ao trabalho, desumanizados, pelo que as suas vidas em Portugal não suscitaram o interesse dos investigadores, não foram consideradas dignas de registo, nem objeto de estudo.

Os africanos que chegaram a Lisboa nessa época eram todos escravos?

Sim, quase todos. De meados do século XV ao século XVIII, a grande maioria eram escravos. Não quer dizer que não existissem africanos que chegassem como pessoas livres. Por exemplo, no século XVI, havia relações intensas entre a corte portuguesa e o Rei do Congo, que enviava para estudar em Portugal alguns membros da sua casa real. Havia também africanos que estavam ligados à igreja. Outros tornaram-se livres – os forros – e alguns, sobretudo mestiços, assumiram funções relevantes na sociedade portuguesa, em particular a partir do século XVIII. Mas a maioria era escrava e vinha para trabalhar nas tarefas mais duras e desvalorizadas da sociedade portuguesa. 

  • Gravura de Lisboa no século XVI. O Bairro Alto atraía ricos oficiais africanos e indianos. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Como é que os africanos se estabeleceram em Lisboa? Como viviam? 

Chegam como escravos, são desembarcados, avaliados – normalmente na zona do Terreiro do Paço – e comprados. Havia um espaço chamado Casa dos Escravos como havia a Casa do Trigo ou a Casa das Madeiras. Eram vendidos a senhores da burguesia ou aristocracia. Normalmente, viviam nos espaços das casas senhoriais, muitas vezes como domésticos. 

E como se tornavam forros, ou livres, e o que é que isso significava realmente?

Desde muito cedo, verificou-se a alforria. Isto é, alguns senhores davam-lhes a liberdade. Eram mais independentes, embora ocupassem na esfera e na hierarquia social os trabalhos mais desvalorizados. Alguns viviam na casa dos senhores. As ordens religiosas, os conventos em Lisboa, por exemplo, eram grandes consumidores de escravos. Desde o final do século XV, princípio do século XVI, os forros começam a organizar-se e a viver na cidade de Lisboa, nas suas casas, muitas vezes arrendadas. Mas havia também quem tivesse casa própria. Há nota nos documentos, sobretudo de mulheres que têm casa própria, porque possuem mais bens, que normalmente conseguem através da atividade comercial. Vivem nos bairros antigos de Lisboa: na Mouraria, Alfama, Bairro Alto. Há também uma massa importante de africanos (livres) que começa a estabelecer-se, sobretudo no século XVI, numa zona ocidental da cidade, mas considerada já fora do espaço urbano de Lisboa.

No Bairro do Mocambo?

Sim, no Bairro do Mocambo! As fronteiras ocidentais de Lisboa situavam-se, naquela época, onde é hoje a Rua Poço dos Negros, a Igreja de Santa Catarina. Depois temos a Av. D. Carlos I, e, do outro lado da avenida, começava o Bairro do Mocambo, onde é hoje a Madragoa. 

Isabel Castro Henriques no Jardim Botânico Tropical, antigo Jardim Colonial, em Belém. Foto: Rita Ansone

Como é que descobriu esse bairro? É a primeira a falar dele.

Descobri este lugar quando fiz a investigação para o meu livro Herança Africana em Portugal, em 2009. Sabia que o termo é de uma língua angolana – o Umbundu. Conhecia mocambos na história de África. Em Angola e havia também no século XVI em São Tomé. Eram lugares para onde fugiam os escravos das plantações da cana-de-açúcar, no mato. Mocambo significa lugar de refúgio, de proteção, aldeia, e é sinónimo de Quilombo, como os que são bem conhecidos no Brasil, cuja origem linguística é o Kimbundu, também língua de Angola. O que eu sabia dos Mocambos suscitou-me logo um interesse particular e percebi que, com este nome, só poderia ser um espaço africano. Tanto mais que havia, em Lisboa, bairros destinados a comunidades, como a Mouraria e a Judiaria. Não havia nenhuma “pretaria”, embora tenha encontrado uma ou outra referência documental a este termo. Existia então o Bairro do Mocambo, dos africanos.

Recém chegados, recém livres… como é que os africanos se organizaram nesse bairro? E como nasceu?

Foi construído numa conjugação de interesses entre as autoridades portuguesas, que ali os viam ali de certa forma mais controlados, e os africanos. Para eles foi também uma estratégia, viverem numa zona onde eram todos de origem africana – embora de línguas e culturas diversas – e onde podiam, um pouco longe do olhar dos portugueses – preconceituoso e crítico -, praticar atividades culturais, cerimónias e rituais que lhes permitiam manter a africanidade. O bairro foi criado por alvará régio em 1593, e seria o segundo dos seis bairros em que estava organizada a cidade de Lisboa. O bairro vai crescendo e a partir do século XVII aparecem portugueses. Sobretudo ligados às tarefas do mar – pescadores, marinheiros, vendedoras de peixe.

As diversas atividades no Terreiro do Paço, no século XVII, por Dirk Stoop. No canto inferior esquerdo, um provável criado negro, portador de uma espada. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Também nisto Lisboa foi singular?

O Bairro do Mocambo é certamente único na Europa de então e ao longo dos séculos seguintes. Não havia outro bairro africano e foi também o mais antigo instalado fora de África. Os quilombos e mocambos no Brasil, mesmo em Salvador da Bahia, são todos posteriores ao de Lisboa. Na segunda metade do século XIX, o bairro do Mocambo desaparece e a sua memória perde-se rapidamente no tempo.

Lisboa era uma cidade de múltiplas nações. Nesta época os africanos eram considerados portugueses, lisboetas?

A maioria dos que nasciam em Portugal, se fossem filhos de escravos, escravos eram. Não tinham nacionalidade, nem cidadania. Os forros, que se saiba, durante este tempo, ficam consagrados como forros – que remete para a origem escrava. Penso que só com a abolição da escravatura, em meados do século XIX, é que os descendentes de africanos – já não entravam legalmente escravos em Portugal desde os anos 1761, legislação do Marquês de Pombal, que proibiu – transformaram-se lentamente em portugueses. Embora não lhes fosse dada a cidadania. Ainda hoje continua a ser difícil. 



Consulta sobre a necessidade de se substituir os cavaleiros africanos, que seguravam nas varas do pálio, na procissão do Corpo de Deus, por outros cavaleiros que deveriam ser nomeados pelo rei, 24 de junho de 1672, Lisboa. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

É essa a história que a leva a concentrar em Lisboa, no seu último livro Roteiro Histórico de uma Lisboa Africana?

Sou lisboeta! Mas sobretudo porque havia e há mais documentação escrita e iconográfica sobre Lisboa do que sobre o resto do país. A maior concentração de africanos era nos centros urbanos, e em particular na capital. No século XVI, 10% da população de Lisboa era africana. Quando observamos a história de Lisboa, encontramos mais gente africana visível, os escravos e os forros, nas suas múltiplas atividades económicas, sociais, religiosas. Logo, foi possível recolher mais informação e estudar de forma mais pormenorizada e densa.

Diz que os negros tiveram uma intervenção na vida social, cultural e económica na vida da cidade. Lisboa não seria o que é sem essa presença? 

Acredito que a construção e a evolução da cidade de Lisboa, como qualquer cidade, tem sempre a ver com aqueles que lá vivem e trabalham. E desempenham um papel fundamental na construção da cidade. Logo, os africanos foram uma massa importante de população que tinha funções laborais em todos os domínios. Ocupavam-se do que era rejeitado pelos portugueses, trabalhos desclassificados, considerados inferiores, mas que eram indispensáveis à gestão urbana. Por exemplo, a limpeza da cidade, a distribuição da água, a circulação de informação – os africanos funcionavam como “correio”. 

Referiu também o comércio.

Sim, a atividade comercial era extremamente desenvolvida pelos africanos e em particular pelas mulheres africanas. Percorriam a cidade a pé e vendiam os mais diversos produtos: peixe, pão, bolos, verduras e frutas, sal, cereais, carvão.… E tinham freguesas, clientes habituais, que diariamente as aguardavam para se abastecerem. A atividade comercial era intensa e foi sempre importante. A preservação e manutenção das casas, também. Uma das figuras africanas que percorreu toda a história é a do africano chamado o Preto Caiador, que caiava os edifícios da cidade. Existem inúmeras representações iconográficas em que vemos o caiador africano. Caiavam as casas, preservavam os monumentos, arranjavam calçadas e ruas, tudo o que era a conservação da cidade, e isto era fundamental. 

Imagem do Preto Caiador. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

E sobrava-lhes tempo do trabalho?

Há uma intervenção permanente na parte lúdica, na música, na dança e na religião. Participavam ativamente como membros das confrarias, em particular, nas procissões, nos atos religiosos, que como sabemos se desenvolviam e proliferavam na cidade de Lisboa. Não só como confrades, pois pertenciam a várias confrarias e irmandades – nomeadamente à de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na igreja de São Domingos em Lisboa, no final do século XV, para acolher precisamente os africanos, escravos ou forros. As confrarias protegiam os africanos, permitiam melhores condições de vida, mais fácil integração na sociedade e relações sociais importantes para desenvolveram as suas atividades laborais. E assim os escravos conseguiam os valores necessários para comprar a liberdade.  

Disse há pouco que a história africana continua a ser mal conhecida, ainda silenciosa. Como poderia ser diferente em Lisboa?

Já é mais conhecida, mais divulgada, graças precisamente a uma série de estudos que foram aparecendo. O que se pode fazer para alargar esse conhecimento é desenvolver sistematicamente projetos diversificados: culturais, musicais, cinematográficos. E no ensino, é fundamental, existe a necessidade de remodelar e renovar os manuais de ensino. 

E fora da escola e do ensino?

Trabalho, por exemplo, com a Associação Cultural e Juvenil Batoto Yetu  num projeto de identificação e explicação dos lugares da memória histórica africana de Lisboa: através de um passeio em tuk tuk, percorrer os sítios da presença africana na cidade. Estamos a desenvolver outro projeto, muito importante, de placas toponímicas explicativas de lugares da cidade de Lisboa onde é possível reconhecer memórias africanas (e agora preservá-las, através das placas). São 20 lugares de Lisboa. O projeto inclui também duas estátuas, uma delas o Busto do Pai Paulino – figura oitocentista importante na defesa das populações africanas de Lisboa -, que está acabada e vai ser colocada no Largo de São Domingos.

Muita coisa mudou nos últimos anos? Podemos considerar que depois da independência das colónias, sobretudo, a presença da comunidade africana em Lisboa passou a ser vista de forma diferente?

Penso que logo a seguir à independência, não houve uma grande atenção em relação à história africana de Lisboa. O interesse pelas questões africanas surge sobretudo a partir do final do século XX. É um problema do século XXI que começa a impor-se, a surgir no contexto intelectual, cultural e social português, nomeadamente através da adesão a formas culturais africanas atuais como a música, a dança, o cinema, as artes plásticas. Isto fez emergir as comunidades de origem africana, quer os afrodescendentes, quer os imigrantes africanos – que existem muitos. Portanto tem havido alguma atenção, mais visibilidade, mais interesse por África. Mas ainda não chega… A população portuguesa foi muito marcada, durante séculos, por uma ideologia desvalorizadora dos africanos.

Isabel Castro Henriques: “Penso que logo a seguir à independência, não houve uma grande atenção em relação à história africana de Lisboa. O interesse pelas questões africanas surge sobretudo a partir do final do século XX. Nomeadamente através da adesão a formas culturais africanas atuais como a música, a dança, o cinema, as artes plásticas.” Foto: Rita Ansone

Um preconceito?

Um preconceito que ainda não desapareceu. Deu origem a uma forte cultura colonial, que ainda permanece. As marcas dessa cultura emergem no tecido social português, através da língua, de representações, de formas de atuação e de vivência. E vemos isso nas dificuldades ainda existentes de um reconhecimento natural da cidadania relativamente às populações afrodescendentes. Quando se observa alguém que tenha uma marca física mais escura, sempre se questiona de onde é, de onde veio. Parte-se do princípio de que não são portugueses, quando na realidade muitos são portugueses. Tão portugueses quanto todos os outros. 

Diz no seu livro que esse preconceito surgiu a partir do século XIX, curiosamente após a abolição da escravatura. Refere que é neste período que são desenvolvidos estudos, por exemplo de Oliveira Martins, que fazem uma desvalorização física, racial e cultural dos africanos.

Penso que esse é um momento do agravamento do preconceito. O preconceito vem desde o século XV com a chegada. Havia um repúdio, o problema da cor da pele, do corpo. Depois, a rejeição das práticas culturais. E depois, uma rejeição social, porque eram escravos. Ainda hoje, privilegiam-se os que pertencem a classes sociais mais elevadas e discriminam-se portugueses das classes sociais mais desvalorizadas. Esse preconceito foi-se modificando e sedimentando em função dos diferentes contextos e conjunturas históricas, sem ruturas, num processo contínuo. O século XIX introduziu uma dimensão fundamental do preconceito que foi a dimensão científica.

Científica como?                                                                          A partir daí não era só o físico, o social e o cultural, era também considerado inferior do ponto de vista científico. Esta vertente estava naturalmente relacionada com as teorias que se desenvolveram na Europa. As teorias raciais e de hierarquização cultural dos vários grupos à escala do mundo. E forneceram uma dimensão científica ao preconceito, tornando-o mais robusto e legítimo. O século XX colonial agrava.                                                                                                  Devido à reivindicação da independência?                       Exato, contra os africanos que recusam a dominação europeia, nomeadamente no princípio do século XX, com as chamadas campanhas de pacificação em África. No caso português, a guerra colonial a partir de 1961. Os africanos são vistos não como combatentes, mas como terroristas: mais uma formulação extremamente negativa. Logo, o preconceito já vem de trás e daí a dificuldade em eliminá-lo. Está extremamente enraizado na população portuguesa.                                                                                   * Nascida em Braga, Júlia Mariana Tavares fez de Lisboa casa, com vontade de contar histórias desta cidade cosmopolita e multicultural. Finalista de Ciências da Comunicação da Faculade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica Portuguesa, está a estagiar na Mensagem de Lisboa. Texto editado por Catarina Pires.

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 9 Comentários

  1. Ulika da Paixão Francodisse:

    13.08.2021 em 10:52 am

    Parabéns Júlia Mariana Tavares!
    Excelente trabalho jornalística.
    Sigo o trabalho da Professora Isabel Castro Henriques, que creio ser minha vizinha no bairro de Belém.
    É uma pioneira, uma estudiosa e uma intelectual como poucas. Concordo plenamente com todo o seu discurso, porque só se pode discursar sobre aquilo que resiste, que não é alvo de destruição. Para mim é tão óbvio o valor da História que não pode haver nada mais forte acima dela. O vazio não é passível de ser estudado.
    Toda a entrevista é muito boa, sendo que destaco, entre tudo o que a Professora Isabel Castro Henriques afirma, o seguinte: «E tal como nunca devíamos ter silenciado as outras histórias, não devemos silenciar a história colonial. Silenciar um aspeto da história global é esconder e limitar a reflexão sobre esse tempo violento e problemático, que é fundamental para podermos assumir, ultrapassar, reconhecer os erros e não voltar a cometê-los. »
    Bem haja.
    Ulika da Paixão Franco

  2. Paulo Salgadodisse:

    14.08.2021 em 7:05 am

    Uma excelente escritora e uma excelente jornalista. Um trabalho que vou explorar … Obrigado.
    Paulo Cordeiro Salgado

  3. Ana Catarina Santosdisse:

    14.08.2021 em 10:24 am

    Excelente entrevista, parabéns. Aprendi muito e fiquei com vontade de saber mais.

  4. António Garcia Barreto

     

       
     

    mar de magoito

     

     

     

    disse:

    14.08.2021 em 11:32 am

    Excelente trabalho jornalístico esta entrevista a uma historiadora de exceção. A Dra. Isabel Castro Henriques foi minha professora de «História da África Negra» na FLL. Lembro com saudade as suas aulas e com um sorriso de bonomia o facto de usar a bainha dos seus jeans dobrada e subida até meio da perna. Era (e é) uma mulher bastante alta.

  5. Paulo Duarte,sjdisse:

    14.08.2021 em 11:50 am

    Que entrevista tão boa. Muito obrigado. A clareza de pensamento que ajuda a humanizar pela verdade das coisas, sem esconder, abafar, negar ou anular. Pelo contrário, há que revelar para, como diz Isabel Castro Henriques, não repetir.

  6. Isabel Perestrello de Vasconcellosdisse:

    14.08.2021 em 12:13 pm

    Que interessante! Parabéns e MUITO obrigada por tudo o que acabei de aprender!

  7. Pingback:Isabel Castro Henriques: “Sou contra a destruição das marcas coloniais” | Chrys Chrystello,Jornalista, tradutor

  8. Jorge Leitãodisse:

    14.08.2021 em 2:30 pm

    Depende das marcas da história que se destroem. Monumentos a indivíduos que se tornaram notáveis pelo seu papel em actividades ligadas ao fomento da escravatura, racismo e domínio colonial, ou que promoveram a sua base ideológica, na minha opinião devem desaparecer do espaço público.
    Estou plenamente de acordo com o historiador britânico David Olusoga, quando diz no The Guardian de 8 de junho de 2020: – o derrube da estátua de Edward Colston (um sujeito cuja fortuna foi obtida através do trafego de escravos) não é um ataque à História. É História.
    Por outras palavras: se a erecção de monumentos é um episódio histórico, a destruição dos mesmos também o é.
    (The toppling of Edward Colston’s statue is not an attack on history. It is history.)

  9. Maria Isabel dos Santos Isidorodisse:

    14.08.2021 em 3:53 pm

     

       
     

    "Sou contra a destruição das marcas da história colonial. Lisboa tem vár...

    Entrevista com a historiadora que lançou o 'Roteiro Histórico de uma Lisboa Africana' sobre a destruição ou pres...

     

     

    Conheço bem a entrevistada. Fui sua aluna em 1975/6 e no ano seguinte, tempos tão memoráveis como as suas aulas, desde o seu modo de vestir( vestidos longos coloridos e floridos, blusas brancas com golas bordadas e jeans arregaçadas pela perna acima) aos temas e metodologias de trabalho que seguia e ensinava, de forma muito honesta e discreta, mas, com grande entusiasmo e sabedoria fundamentada. Para nós, acabados de sair do fascismo, aquelas e outras aulas eram um deslumbre…..esta entrevista é muito importante para divulgar todo o seu trabalho pioneiro em Portugal, mal conhecido, por ser uma investigadora discreta e doce, nada dada a circuitos de poder. Está na altura de alguma entidade dar a conhecer de forma organizada e sistemática o seu trabalho intelectual, começar pelos seus livros, fazer “mesas redondas”, cursos na Gulbenkian, CCB, Organização de percursos por Lisboa, guiados por alguém indicado pela Investigadora Isabel Castro Henriques, etc, etc….

https://amensagem.pt/2021/08/11/entrevista-isabel-castro-henriques-historia-colonial-roteiro-lisboa-africana-destruicao-simbolos-coloniais-padrao-descobrimentos/