Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


13-10-2021

RAIA–O POÇO DO DESESPERO - (Primeira parte- capítulos I e II)PEDRO MASCARENHAS


 I

Mónica Antão estava felicíssima com a paisagem que a rodeava. Apesar de ainda não se sentir adaptada ao calor ardente e sufocante, e ao elevado grau da humidade de Goa (Índia), ela, contudo, reconhecia-se compensada com o que contemplava. À sua direita situava-se o vasto arrozal que se alargava até a montanha esverdeada, em cujo topo se destacava uma bonita capela caiada de branco, dedicada ao Anjo S. Gabriel. À sua esquerda ficava uma lagoa de água retida das chuvas de Monção e que se estendia até as outras montanhas cobertas de um manto mais esverdeado do que o lado oposto. No arrozal viam-se alguns camponeses controlando o fluxo da água da lagoa que iria alimentar a segunda sementeira de arroz. As terras, em socalcos, estavam muito divididas em pequenos quadrados e pertenciam, umas, aos particulares e legadas pelas famílias de geração em geração, e, outras, à comunidade. Mónica não conseguia entender como é que aqueles homens e sobretudo as mulheres conseguiam expor-se ao cruel e impiedoso sol durante tantas horas. Estavam todos descalços e com água que lhes nivelava os joelhos. Algumas cabeças estavam cobertas com panos que lhes serviam de chapéus.

Debruçados, uns traçavam com varas círculos no terreno ensopado, enquanto outros riscavam longos sulcos. As primeiras colheitas (sorôdio) foram laboradas no final da Monção e agora no princípio deste mês de Dezembro já estavam a preparar-se para as segundas (vangana), graças à abundante água retida no outro lado da “banda” (terra amontoada que servia, simultaneamente, de estrada e dique). O panorama que ficava à sua esquerda era deslumbrante. A lagoa cobria-se de muitas plantas lacustres, entre as quais uma espécie de nenúfares que emitiam da sua parte central uma vistosa flor vermelha. Uma variedade de pássaros sobrevoavam aquelas plantas, enquanto as garças (bokim) e as gaivotas (sounnim) se atreviam a pousar naquelas ilhas flutuantes, exibindo-se de modo muito barulhento como que tentando intimidar a temível águia (gonn) esfomeada que pairava, alguns metros acima, em busca de uma presa. Lá mais adiante, as elevações estavam atapetadas por uma vegetação de um verde muito forte, tendo por fundo um céu azul turquesado completamente limpo. Certamente se o pintor Van Gog fosse vivo não deixaria de fixar na tela aquele pedaço do paraíso que ficava a dois passos da igreja de Raia (Salcete), e muito próximo do Seminário de Rachol, tendo como vizinho o rio Zúari.

Os pais da Mónica possuíam uma casa ancestral que ficava entre o seminário e a estrada principal que apontava para a agitada cidade de Margão. Ela nascera em Ottawa, (Canadá), para onde os pais, em 1950, tinham emigrado em busca de melhores perspetivas já que a sociedade goesa, sob domínio colonial, estagnara e não se vislumbrava qualquer mudança nos tempos mais próximos quer no desenvolvimento quer na liberdade. Naturalmente para aquela aventura incidiu uma influência: Freddy, um anglo-indiano, que do Canadá remetia longas cartas para o seu amigo, Carlos, pai da Mónica. Este tentava imaginar como seria aquela terra que Freddy descrevia com rasgados elogios, falando-lhe da disciplina, competência, desenvolvimento, riqueza, salários altos, quintas a perder de vista, grandes prédios e de um grande futuro.

Mónica, agora com 40 anos de idade, colaboradora ativa da sua paróquia católica, solteira que não tencionava dar o nó porque prezava muito a sua liberdade (ou não fosse ela canadiana), e licenciada em gestão de empresas, pertencia aos quadros superiores do South Canada Bank.

Além disso, pela forte educação religiosa que os pais lhe transmitiram, achava os homens canadianos demasiados materialistas, egoístas e até presumidos. Filha única, era muito inteligente, culta e sabia o que queria. A civilização indiana dizia-lhe muito.  

Encontrava-se de férias na Índia pela décima vez, e no ano anterior adquirira um apartamento de luxo em Miramar, Panaji, próximo de D.Paula. Pelas contas dela e pelo seu nível de vida, o T3 que comprara era baratíssimo, pois que em Ottawa pagaria dez vezes mais. Nesta visita a Índia repartiu o mês das férias em três estadias: Os primeiros 10 dias foram passados entre Nova Delhi e Agra, os 10 seguintes em Panaji, no seu apartamento, e os restantes dias em Raia, em casa dos tios. Não conseguia esquecer o espetáculo maravilhoso, aquele que assistira na cidade de Agra, quando, depois de ter visitado o Agra Red Fort, subiu os degraus e deu de caras com o Taj Mahal. Aquela que é considerada uma das sete maravilhas do mundo deixou-a de boca aberta. Já tinha lido muita coisa, já tinha visto postais e vídeos, mas…estar naquele lugar e observar o mausoléu ao vivo, era de cortar a respiração.

Este ano, Panaji surpreendeu-a pelas movimentações e azáfama em torno das obras em andamento entre o Miramar e a Ponte Patto, com vista à realização do 35º Festival Internacional do Cinema Indiano. O jeep Mahindra, que alugara, tinha que ser conduzido muito lentamente naquela artéria.Com agrado verificou que o Mercado de Panaji estava ordenado e bem mais disciplinado do que no ano anterior e sempre bem abastecido não faltando nada nem mesmo os grandes e apetitosos caranguejos (curli) ainda vivos.

Mónica achou que já era tempo de regressar ao jeep que estacionara na parte mais larga da estrada. Permanecera aí, seguramente, mais de uma hora perdida nesse sonho real tão diferente das distantes terras frias do Canadá. Era quase meio-dia. Os imponentes coqueiros nas bermas formavam duas longas alas como se de guardas se tratassem, indo de um extremo ao outro.

Caminhava lentamente quanto reparou nas conhecidas plantas sensitivas “as noivas envergonhadas” (lojechem okol) que tanta admiração lhe causara quando visitara Goa pela primeira vez. Debruçou-se e com as chaves do Mahindra tocou nelas. As plantas executaram dois movimentos simultaneamente: fecharam as minúsculas folhas e baixaram os ténues raminhos espinhosos, colando-se ao chão vermelho e tornando-se quase invisíveis. «Fantástico!» -pensou. Estava naquela posição durante longos minutos, quando um velho camponês de tronco nu, conduzindo dois búfalos sujos de lama, aproximou-se dela:- «Kitem zalem, bhai? (Que se passa, menina?)». Mónica aprendera o konkani com os pais (coisa rara entre os goeses emigrantes), mas por falta de prática só dominava cerca de 50 por cento, o suficiente para se fazer entender como acontecia regularmente quando ia aos mercados. Entendia quase tudo mas sentia alguma dificuldade quando queria expor as suas opiniões. Virou-se para o homem e com um bonito sorriso respondeu-lhe lentamente: -«Hem... zadd…coslem….tem… poittam.» (Estou a observar esta planta).

O homem de nome Gabru (corruptela de Gabriel, à boa maneira goesa), sempre curioso, perguntou-lhe ainda quem ela era, onde morava, o que fazia,...enfim, entabulou uma conversa e por fim aconselhou-a a não ficar muito tempo naquele local, porquanto mais abaixo ficava um poço, no qual ainda muito recentemente uma jovem estudante se suicidara e por isso que aquele lugar era agora considerado maldito e, onde, sobretudo à noite, ocorriam coisas estranhas. Mónica, ainda agachada, levantou a cabeça e viu o referido poço num dos cantos de um socalco. Gabru, como que arrepiado, abalou de imediato, deixando a indo-canadiana pensativa e ao mesmo tempo incrédula. Quando o velho se afastou uns metros, Mónica levantou-se, sacudiu a terra vermelha do joelho direito das calças blue-jeans e observou melhor o poço que tinha água até à borda circular, razão porque não o notara, pois confundira com a água que o cercava.

 

                                                                       II

Durante o almoço evocou a história do suicídio e indagou por mais detalhes. Dominic, o primo mais velho e estudante, narrou-lhe que naquele poço, construído por gigantes de nome Paulistas, segundo uma antiga lenda goesa, fora encontrado o corpo de uma jovem de 18 anos. A estudante de nome Regina Dourado, perdida de amores e muita deprimida por não ser correspondida, pusera termo à sua vida. Dias mais tarde, de acordo com os boatos que circulavam, alguns moradores viram, próximo do lugar fatídico e bem noite dentro, um vulto feminino de braços estendidos para o céu como que a suplicar algo. O vulto não estava em terreno seco mas na lama, e por vezes parecia pairar no ar. O mistério adensara-se, acrescentaria Dominic, depois de um tal Gabru ter relatado aos amigos que numa determinada noite ao passar pelo local ouvira uma voz feminina sussurrando: - «Mujea Deva...Mujea Deva...» (Meu Deus…Meu Deus.) ao mesmo tempo que a água no interior do poço se agitava, embora não se avistasse nenhum vulto. Apenas sons ecoados de alguém numa situação de grande desespero.

Quando se deitou pelas 10 horas da noite, Mónica recordou-se dos inúmeros livros que lera e que descreviam os misteriosos relatos registados na milenária Índia. Os sanyasis (homens santos) nos Himalaias, seminus, enfrentando temperaturas abaixo de zero graus ou levitando-se no espaço como os flocos de algodão, as almas penadas dos soldados ingleses deambulando pelos fortes abandonados, a história dos gigantes Paulistas que numa só noite cavaram 12 poços em locais dispersos de Goa, utilizando pedras enormes para a sua construção e em especial as aparições da Nossa Senhora em Batim (Ganxim), próximo de Agaçaim.

Mónica interessara-se pelas aparições de Batim porque a vidente de origem goesa Yvetta Gomes também vivia no Canadá, mais precisamente em Marmora (Toronto), embora não a conhecesse pessoalmente. Yvetta, mãe de dois filhos, era natural da chamada ex-África Oriental Britânica tal como o seu marido, e um dia estando a rezar o terço numa quinta em Marmora passou por uma experiência mística. Contou que Nossa Senhora lhe tinha aparecido e pedido para viajar a Goa, onde a visitaria mais vezes. Assim, depois de ter examinado vários templos cristãos, deparou-se-lhe uma igreja decrépita numa pequena colina em Batim, onde a 24 de Setembro de 1994 assistiu à primeira Visão em Goa perante uma multidão. Este acontecimento extraordinário está registado no livro, editado várias vezes, "Was Mary There?", sendo seu autor o jornalista Marc de Souza da revista Goa Today. Este episódio ainda não foi reconhecido pela Igreja, apesar de Marc de Souza continuar a recolher testemunhos de "milagres".

( Continua  )

Pedro Mascarenhas

02/03/2008                Publicado na revista Ecos do Oriente