Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


20-03-2022

RAZÃO, EXCITAÇÃO, CANSAÇO, DESINTOXICAÇÃO - Pacheco Pereira


Pacheco Pereira, in Público, 19/03/2022

(O Pacheco Pereira anda preocupado com o fanatismo e a histeria irracional que por aí anda, uma epidemia russofóbica à solta, impulsionada pelas televisões amestradas pelas agências de inteligência dos EUA, e pela censura imposta pela União Europeia. Eu também estou preocupado e cada vez mais.

É por isso que publico no final do texto um vídeo de uma entrevista de um coronel americano ao um canal de televisão, também americano, que nos dá uma visão da guerra na Ucrânia que as nossas televisões nos ocultam. Como em qualquer julgamento justo, é preciso ouvir as duas partes: a defesa e a acusação. Só nos permitem ouvir uma, logo algo está mal nas nossas ditas democracias.

Estátua de Sal, 19/03/2022)

Não basta ter uma boa causa, é preciso transformá-la em políticas democráticas, no contexto da vida pública em liberdade, e defrontar muitas questões de que a emoção não só não cuida, como cala.

Cobrir, em termos comunicacionais, uma guerra como a da Ucrânia é muito difícil. Implica novas regras de boa comunicação e deontologia jornalística, mantendo as antigas, adaptadas a um conflito com características inéditas. Muitas imagens da guerra actual parecem-se com outras relativamente recentes: bombardeamentos da faixa de Gaza e no Iémen, ataques na Bósnia, na Sérvia, na Líbia, na Somália, na Guerra do Golfo. Do mesmo modo, a presença da memória da II Guerra Mundial, principalmente na imagem das cidades devastadas sem distinção entre prédios “civis” e objectivos militares, parece também servir de comparação. Eu insisti no “parecem” porque penso que esta guerra tem características novas e problemas novos, todos muito centrados na comunicação social.

Há, para já, duas coisas que são novas, até porque a velha máxima de que a quantidade gera a qualidade é relevante, entendendo-se como qualidade não um conceito valorativo, mas uma nova forma de identidade, e que são: a presença maciça da comunicação social, produzindo ou incorporando na sua informação milhares de vídeos, e aquilo a que a CNN americana e a portuguesa chamam “breaking news”, ou seja emissões de quase 24 horas por dia sobre o mesmo assunto, com a excepção nacional, obviamente, do futebol.

Não sei quantos jornalistas estão na Ucrânia e nos países limítrofes, com excepção da Rússia onde não podem trabalhar a não ser clandestinamente, mas devem ser várias dezenas. Isso significa uma cobertura intensiva, desigual no seu valor e dependente do conhecimento, medo e comodismo do correspondente, e que tem sido muito centrada nos refugiados, numa primeira fase, e agora nas destruições civis. Por razões óbvias, as informações sobre a guerra propriamente dita são escassas e muito dependentes do acesso aos campos de batalha. Aqui não há jornalistas “embebidos” como na guerra do Golfo nas unidades militares, quer nas russas, quer nas ucranianas, e é também neste terreno que há muita desinformação dos dois lados.

Sabemos pouco sobre a frente de batalha, mas isso é normal na condução de operações militares. O que é grave é que essa ignorância não pareça ser sentida como importante, no meio da multidão de imagens muito mais “populares”.

A transmissão principalmente nas televisões, o meio mais poderoso na sua comunicabilidade e empatia, de 24 horas por dia, levanta sérias questões de qualidade do jornalismo e da sua função de dar a todos, em democracia, informações rigorosas para poderem ter opinião e decidirem. Uma guerra é um tema emocionalmente forte, e 24 horas de guerra por dia presta-se a dois efeitos aparentemente contraditórios: um, um efeito de viciação; outro de cansaço. Quer num caso, quer noutro, o rastro comunicacional torna-se essencialmente emotivo e pouco racional, o que o deixa muito propício à manipulação. No contexto de mentalidade, cultural, social e política, actual torna-se mais um factor agravante da radicalização numa sociedade que já o é em demasia.

Numa democracia, as emoções têm um papel decisivo e tudo as favorece, enquanto a necessidade da razão tem uma vida difícil. As emoções moldam a opinião pública com facilidade, e a razão, não. A comunicação social, principalmente a televisão, que é claramente preponderante mesmo em relação ao papel das chamadas “redes sociais”, comunica facilmente a emoção, e com 24 horas em cima, com uma repetição sistemática de imagens fortes, esmaga a razão. Não podemos deixar que a razão se refugie apenas na reacção do medo, ele próprio uma emoção. O caso da discussão sobre a “zona de exclusão aérea” é um desses casos.

Uma repetição sistemática de imagens fortes, esmaga a razão.

Podemos achar que toda esta imersão emotiva é por uma boa causa, a causa da indignação colectiva contra a violência agressiva de Putin e dos seus crimes, mas não basta ter uma boa causa, é preciso transformá-la em políticas democráticas, no contexto da vida pública em liberdade, e defrontar muitas questões que a emoção não só não cuida, como impede.

Políticas de alianças e defesa, políticas energéticas, políticas de independência alimentar, políticas de emigração e refúgio, políticas face à pandemia, políticas externas para além do teatro europeu, políticas de liberdade e contra a censura, tudo numas circunstâncias em que a guerra actual mudou quase tudo. Tudo isto devia estar a ser discutido desde já, para além dos anátemas e da arregimentação, mas isso pode ser mau para as audiências, porque, quer por viciação, quer por cansaço, as pessoas não estão para aí viradas.

Mas sabem qual é alternativa? A alternativa é usar a superficialidade das emoções para fazer uma caça às bruxas, ou para fazer passar pseudo-argumentos que são uma patetice mas circulam. Como, por exemplo, dizer que os ucranianos estão a resistir aos russos porque como povo já tinham resistido à obrigatoriedade da vacinação. Os portugueses pelo contrário, como foram que nem cordeirinhos vacinar-se a mando do “Estado”, não levantariam um dedo se fossem invadidos pelos espanhóis. O desmame das “breaking news” vai ser complicado, mas é necessário.

O autor é colunista do PÚBLICO

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Razão, excitação, cansaço, desintoxicação “FRANCAMENTE, HÁ MENOS DANOS NA UCRÂNIA DO QUE INFLIGIMOS AO IRAQUE QUANDO ENTRAMOS LÁ” | Cortes 247

 

   

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José Pacheco Pereira

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