Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


02-12-2021

Os línguas e a gramática tupi no Brasil (século XVI) - Maria Cândida DRUMOND MENDES BARROS


Museu Emílio Goeldi / Belém, Brasil

1. Introdução

No Brasil, o tupi -chamado de língua brasílica nas crônicas jesuíticas- foi a língua da conversão religiosa, no período de 1549, data de chegada dos jesuítas, até 1759, quando a Companhia de Jesus foi expulsa da colônia e teve início uma política patrocinada pela administração colonial de oficialização do português no contato com os grupos indígenas. No contexto deste trabalho tentar-se-á reconstruir a política lingüística da Companhia de Jesus no Brasil no século XVI através de três questões[1][1]: 

1. identificação do intérprete tupi da missão, particularmente aqueles que eram membros da Companhia de Jesus. Com o levantamento espera-se rastrear a forma de aquisição do tupi no interior da ordem religiosa (pela oralidade ou pela escrita).

2. a presença de uma tradição de discurso público exortativo (com valores de advertência, clamor, etc.) tanto entre missionários como entre grupos tupi e a forma de sobreposição dessas duas tradições discursivas como parte da estratégia de conversão jesuítica.

Esses dois tópicos estão relacionados ao termo "língua", usado nas crônicas jesuíticas com o sentido de intérpretes tupi ou como pessoas com poder de oratória nesta língua.

3. conhecer os espaços de elaboração e difusão de uma escrita colonial tupi através do enfoque do uso colonial da gramática de Joseph Anchieta. O surgimento da escrita tupi será focalizado como indício da presença da "Ideologia das Letras" (MIGNOLO, 1992) que foi um movimento intelectual do Renascimento europeu, o qual privilegiou a escrita como forma de conhecimento. A ideologia das letras estava ancorada na escrita alfabética, na tecnologia da imprensa e na cultura dos livros. Tendo sido contemporânea à expansão do mundo colonial, a ideologia das letras tomou a escrita alfabética como marca da fronteira entre barbárie e civilização. Os povos indígenas da América, por não terem a escrita alfabética, representariam a barbárie. No caso dos grupos indígenas que possuíam algum sistema de escrita, como os Náhuatl e Maya, o papel colonizador no âmbito da linguagem ocorreu através da substituição desses sistemas autóctones de escrita pela alfabética.

Essas três questões levarão à caracterização da política lingüística da Companhia de Jesus pela diglosia tupi versus latim, línguas a serem caracterizadas pelos valores de externa versus interna. A língua brasílica era utilizada pela missão para comunicar-se com os de fora, enquanto o latim se definia como língua de domínio interno da Companhia.

A atenção recairá particularmente no século XVI, nos primeiros 50 anos dos jesuítas na colônia. A principal fonte de documentação será a obra de Serafim Leite sobre a história da Companhia de Jesus no Brasil.

2. O intérprete missionário

Antes da chegada dos missionários e da administração colonial, a função de intérprete já existia nas situações de chegada de navios para abastecer ou comercializar (CORTESÃO, 1955). Em geral, esta função era exercida pelos colonos europeus espalhados pela costa. O aprendizado da língua indígena por eles era essencialmente oral, fruto da convivência por laços de parentesco e compadrio com os grupos indígenas da costa. Não há menção ao aparecimento de uma escrita tupi neste período. São Vicente é um caso exemplar de núcleo de colonos formado graças às relações de alianças com os grupos indígenas da região e com predomínio do uso do tupi como língua de contato (CARDIM, 1939:171). P ara esses europeus estabelecidos na costa, o tupi funcionava como língua de comunicação interna, ao ser empregada para falar com familiares e aliados.

A função do tupi para a Companhia de Jesus foi de língua de comunicação externa, ao ser usada para falar com os índios. A própria existência de intérpretes no interior da Companhia de Jesus indicaria as limitações do domínio do tupi entre os seus membros. Nem todos os membros a sabem; os "padres do reino" (aqueles que chegavam já ordenados), por exemplo, costumavam receber dispensa de saber a língua brasílica (LEITE, 1950:v.II:564). Dos oito provinciais que a Companhia de Jesus teve no Brasil no século XVI, apenas um (Anchieta) é reconhecido como tendo conhecimento do tupi.

As crônicas mencionam o uso de índios "mamaluquos" (filhos de colonos com índias) e colonos europeus exercendo o papel de intérpretes para a Companhia. O emprego de mulheres e crianças indígenas nessa função, em particular nas situações de confissão, foi um tema polêmico no interior da Igreja. Manuel da Nóbrega, primeiro provincial dos jesuítas no Brasil, e o bispo P edro Fernandes mantiveram em 1552 um debate em relação ao tema. O bispo questionava o seu uso (LEITE, 1956:361-363), enquanto Nóbrega argumentava que não havia inconvenientes por serem eles "feitos a nossa mão" (LEITE, 1956:370).

Apesar do uso de intérpretes externos à ordem religiosa, o empenho da Companhia foi formar seu próprio quadro de "línguas", vinculados à Missão por laços de obediência. Apenas nos primeiros anos, os jesuítas compartilharam intérpretes com a administração; posteriormente, a Companhia ganhou uma posição privilegiada frente à segunda, ao estabelecer seu próprio corpo de "línguas" e chegando mesmo à posição de emprestá-los para a administração. No período de 50 anos, é possível alistar cerca de 60 nomes de jesuítas identificados como tendo algum domínio do tupi[2][2]. Deles, 43 entraram na Companhia de Jesus na colônia; sua procedência foram colonos, filhos de portugueses crescidos no Brasil e órfãos portugueses. Jesuítas "línguas" que chegaram já ordenados foram em menor número. A diferenciação entre jesuítas "nascidos na terra" e os do "reino" esteve ligada a ter ou não domínio do tupi[3][3].

A forma de atuação dos irmãos "línguas" -que não tinham prerrogativas para oficializar sacramentos- era acompanhando os "padres do Reino" (1551/LEITE, 1956:226). Quanto maior o posto -o de provincial, por exemplo- maior o número de intérpretes acompanhando-os. Nóbrega e Luis Grã, por exemplo, são mencionados em algumas ocasiões viajando pelas casas jesuíticas acompanhados por vários "irmãos línguas".

Nos primeiros anos, o recrutamento de membros para os quadros jesuíticos esteve determinado pelo domínio da língua brasílica. Nóbrega, provincial até 1559, formou seu quadro de "línguas" basicamente através dos colonos e meninos órfãos enviados da Europa[4][4]. Os meninos órfãos ("os irmãos menores") chegavam na colônia em média com 14 anos. No fim do  período de noviciado, não entravam nas classes de gramática ou de humanidades (como ocorreria na Metrópole) sem antes passarem um tempo nas aldeias (LEITE, 1950:v.II:563). Outra forma de expor os "irmãos menores à língua da terra" era pela proximidade das escolas para crianças indígenas à dos adolescentes portugueses. Estes eram os momentos de aprendizado da língua brasílica. 

Outro importante contingente de "línguas" foi o de colonos e meninos portugueses crescidos no Brasil. A importância dos colonos e seus filhos enquanto potenciais membros da ordem é possível verificar pela preferência de se ter São Vicente como a principal base dos jesuítas. Em 1550 Nóbrega decidiu instalar ali a primeira casa do grupo e não em Salvador, sede do governo na colônia. A boa relação dos colonos com os índios e o domínio que tinham das duas línguas seriam os motivos principais para a instalação em São Vicente (1553/LEITE, 1957:15, 76)[5][5].

A importância que havia no fato de ser "língua" pode ser observada na Colônia pelo grande número de solicitações de dispensa das exigências institucionais para receber os votos. Os pedidos de dispensa apontam para o fato de que aquelas pessoas não correspondiam ao perfil requerido na Metrópole, mas ainda assim se pleiteava sua entrada ou promoção na Ordem, muitas vezes pelo motivo de domínio da "língua da terra". P or exemplo, em relação a P ero Correia, se pedia dispensa da pena de morte de índios, fato ocorrido antes de ter entrado na Companhia de Jesus; para Fernão Luis, dispensa de votos por já ser padre secular; para Adão Gonçalvez, dispensa da exigência de nunca ter sido casado, etc. Em 1568, a Congregação solicitava a dispensa de maiores estudos a todas as pessoas que soubessem a língua da terra (LEITE, 1950:v.II:563).

Um dos casos de dispensa foi o de saber latim, monopólio dos jesuítas em P ortugal. Enquanto nos colégios da Metrópole, era obrigatório o seu conhecimento, na Colônia, pelo fato de alguém dominar a língua brasílica ("que es la más principal scientia para acá más necessária" (NÓBREGA, 1561/ LEITE, 1958:363)), podia ser dispensado do conhecimento do latim. O interesse pela língua brasílica versus a não importância dada ao latim no período de Nóbrega pode ser apreciado nas menções de que alguns irmãos línguas tinham suas aulas de latim (gramática) suspensas para irem para as aldeias. Como motivo para dar uma formação diferente nos Colégios da Colônia, os jesuítas alegavam a ausência de escrita entre os índios no Brasil[6][6].

Ser "língua ou não-"língua" se sobrepôs a não ser "letrado" ou sê-lo[7][7], com repercussões na possibilidade de assumir cargos dirigentes no interior da ordem religiosa. Ao longo do século XVI, houve uma oscilação quanto a política de recrutar os "nascidos na terra". Os casos de defesa de recrutamento dessa parcela da populaçao eram sempre baseados no domínio do tupi que possuíam.

3. A importância do discurso público exortativo entre missionários e grupos tupi

As crônicas dos jesuítas no Brasil relatam situações de conflitos no plano discursivo, que tiveram seu desenlace intermediado por discursos em tupi feitos pelos "línguas". Alguns relatos contam de índios que, pela oratória, fizeram mudar a posição de todo um grupo, contra ou a favor dos jesuítas[8][8]. Outras vezes, são situações de perigo de vida que foram resolvidas pela eloqüência do intérprete, como relata Navarro em 1551 (LEITE, 1956:278).

O discurso público, com o objetivo de clamar, advertir etc. era um elemento cultural comum tanto aos grupos tupi como aos jesuítas. Os grupos tupi são mencionados como apreciadores dos discursos públicos, pela importância que davam aos "senhores da fala"[9][9]. Também os jesuítas, através das pregações, cultuavam o mesmo gosto pela oratória. A presença da oratória entre os jesuítas pode ser encontrada no "exercício dos tons", que consistia na preparação de pregadores em três fases (LEITE, 1950:v.II:300). Quanto à oratória tupi, institui-se no Colégio da Bahia o hábito de que em sessões solenes, como em visitas de prelados, houvesse demonstrações de pregações de "orações em prosa e em verso na língua do Brasil" (LEITE, 1950:v.II:562).

Assim como os índios tinham  aqueles que eram reconhecidos pelo domínio da oratória, os jesuítas também o tiveram. Alguns "línguas" missionários foram reconhecidos como "pregadores" na língua indígena, pelo domínio da oratória em tupi. As crônicas costumam compará-los a um Cícero, "trombetas" na língua indígena (LEITE, 1950:v.II:548). 

Uma diferença da oratória dos índios em relação àquela cultivada entre os jesuítas é que nesse segundo grupo ela mantém relação com a escrita. P ero Correia pedia em 1553 livros "em romance", porque ele sabia a "língua da terra", mas "se um pregador não tem coisas novas enfastia" (CORREIA, 1553 apud LEITE, 1937).

A estratégia de conversão por parte dos jesuítas de São Vicente foi a de substituir a oratória do "senhor de fala" pela da pregação cristã, realizando esta nos momentos tradicionalmente destinados àquela, ou seja, nas primeiras horas do dia[10][10]. A ocupação missionária do espaço e tempo da oratória do "senhor da fala" pode ser considerada como uma forma de colonização da linguagem, definida por Mignolo como sendo a situação na qual a voz de uma comunidade é suprimida e desacreditada por outra modalidade discursiva (MIGNOLO, 1992:310).

Nos primeiros anos da conversão, a sobreposição das duas tradições de oratórias está presente na prática de usar as "pausas", "quebras" e gestualidade do discurso indígena por parte dos jesuítas[11][11]. Em 1574, é mencionado um abandono desta linha discursiva, ao se procurar diferenciar a pregação cristã da oratória indígena[12][12].

4. Gramática tupi:

Uma constante da história colonial das línguas indígenas utilizadas na conversão religiosa foi a de terem recebido algum tipo de escrita alfabética. Sobre elas, uma trilogia de obras foi elaborada: catecismos, vocabulários e gramáticas. Desses três gêneros, o primeiro a ser elaborado em tupi foi o catecismo. Este tipo de obra era complementado com as falas próprias para cada cerimonial cristão (batizar, casar, ungir, enterrar, confessar, declarar e admoestar)[13][13]. Textos como esses foram escritos logo no primeiro ano da chegada dos jesuítas por ordem do provincial Nóbrega. Dois padres do Reino foram encarregados de escrevê-los com o auxílio dos colonos, em especial um que era alfabetizado (PIRES, 1551 apud LEITE, 1956:252)(NAVARRO, 1551 apud CORTEZAO, 1955). Navarro incumbiu a esse colono de traduzir sermões, um texto para ser usado na confissão e orações (LEITE, 1958:546).

Em relação aos vocabulários, Leite avalia que foram obras elaboradas por iniciativa e uso individual até 1565. Neste ano, foi solicitado pela metrópole um vocabulário para que os jesuítas europeus, a caminho da colônia, pudessem usar como forma de aprendizado.

Quanto a gramática, a primeira foi a de Anchieta, escrita entre 1555-56 em São Vicente e publicada em 1595. Uma outra,  tupi, foi escrita no século XVII por Luis Figueira, quando o foco da ação jesuítica passou a ser as colônias mais ao norte (Maranhão e Grão P ará). Anchieta, ainda, colaborou com Manuel Viegas na elaboração de uma arte na língua Marominin.

Para ler um catecismo tupi, requeria ser alfabetizado em português, já que essa ortografia serviu de base para a escrita tupi. P ara usar um vocabulário, exigia, além de ser alfabetizado, conhecer as regras de uso desse gênero de obra (consulta ao significado de palavras isoladas ordenadas alfabeticamente). No caso da gramática tupi, era requerido  um conhecimento extra, o de saber noções da gramática latina. Saber falar tupi não tornava uma pessoa capaz de compreender uma gramática nesta mesma língua.

A história da gramática tupi se constrói paralela ao ensino de latim. A idéia de fazer uma Arte tupi já é mencionada por Navarro em 1553 (LEITE, 1950:v.II:549), porém seu primeiro autor acabou sendo Anchieta, professor de latim em São Vicente. Ele menciona estar trabalhando na Arte em 1555, mas não encontrava ali pessoas que soubessem gramática[14][14], que pudessem fazer uso da obra, apenas os que chegassem da Metrópole com conhecimento de latim. Um ano mais tarde, Nóbrega levou uma cópia da Arte para Bahia, e quem parece disposto a aprender a língua brasílica por meio dela é o professor de Latim do Colégio da Bahia, Antonio Blazques (1556 apud LEITE, 1957:301).

A primeira gramática tupi (1555) foi contemporânea à primeira gramática do português (1536). A proliferação de gramáticas no século XVI foi um sinal da ideologia das letras, que tornou o latim modelo universal. Essa universalização surge pela elaboração de escritas alfabéticas e pelo uso de categorias gramaticais latinas como molde para as línguas coloniais (MIGNOLO, 1992:305). As gramáticas do século XVI não tiveram a função especulativa que possuíam na tradição grega e se tornaram instrumentos de aprendizado de línguas. Embora as gramáticas em línguas européias tenham sido propostas como meio de difusão daquelas línguas nas colônias, a obra gramatical acabou sendo aí utilizada apenas  como forma de ensino das línguas indígenas usadas na conversão (as "línguas gerais"). 

No Brasil, os principais autores da escrita tupi foram os "línguas" jesuítas; a administração colonial não se interessou por uma escrita tupi. Quanto aos colonos, apesar de ter sido um deles o primeiro a produzir textos escritos em tupi, isto ocorreu sempre por solicitação dos jesuítas. Um indício de que não havia muitos letrados entre os colonos conhecedores da língua brasílica foi a ida de Navarro a P orto Seguro atrás do único colono alfabetizado.

Quanto aos usuários dessa escrita, não se dirigia aos índios; seu fim era apenas para uso interno da missão, haja visto que as classes de "ler e escrever" para crianças indígenas eram em português (LEITE, 1958:65*) e que a forma discursiva usada na conversão foi essencialmente oral. Isso representava enfatizar a memória ("saber de cor")(LEITE, 1957:352) como forma de difusão dos textos religiosos entre os catecúmenos, além de usar textos na forma de diálogo de perguntas e respostas[15][15] (LEITE, 1957:137), para que, com "maior facilidade lhes ficasse na cabeça" (LEITE, 1950:v.II: 556-557).

As obras escritas em tupi se dirigiam essencialmente aos "padres do reino". A gramática era a estratégia de aprendizado da língua para os membros vindos da metrópole com uma forte formação literária (FIGUEIRA, 1878).

Através da observação de publicações em línguas indígenas, percebe-se que a ideologia das letras foi forte no mundo colonial espanhol  e branda nas colônias portuguesas por causa da proibição de haver imprensa nos domínios portugueses. Nos primeiros 50 anos da presença dos jesuítas no Brasil, à exceção da impressão da gramática de Anchieta nada mais foi publicado, apesar de haver solicitações nesse sentido por parte dos missionários. O primeiro catecismo tupi impresso ocorreu em 1618, depois de cerca de meio século do exercício de escrever textos cristãos em tupi. No período em exame, século XVI, a escrita tupi existiu apenas na  forma de manuscrito, tendo sido o século XVII mais pródigo de publicação de materiais tupi. O maior número de impressão ocorreu na época em que o trono português esteve nas mãos dos reis espanhóis (1580-1640).

Uma repercussão da ideologia das letras na forma de aprendizado do tupi pelos jesuítas pode ser encontrada no momento em que a gramática se torna central como instrumento pedagógico. O jesuíta Antonio P ires mostra, por exemplo, uma outra estratégia para aprender a língua, dessa vez a partir de noções da gramática latina[16][16]. A gramática continua presente mesmo quando os jesuítas são enviados para as aldeias para aprenderem oralmente a língua; em 1610, por exemplo, havia determinações para o estudo do tupi pela arte nas aldeias, pelo menos meia hora por dia (LEITE, 1950:v.II:562).

A gramática de Anchieta deu ensejo à institucionalização do tupi como matéria de ensino nos colégios (LEITE, 1950:v.II:561). Esse fato pode ser observado nas cartas de jesuítas da Bahia, as quais falam sobre a ordem do provincial  Luis Grã de que todos estudassem tupi pela gramática de Anchieta. (MELO, 1560 apud LEITE 1958:283; PEREIRA, 1560 apud LEITE, 1958:306; PIRES 1560 apud LEITE, 1958:310). Mais tarde, o Visitador Inácio de Azevedo, quando tornou obrigatório o aprendizado do tupi, determinou que aqueles que soubessem latim, deveriam exercitar-se pela Arte da Língua (LEITE, 1950:v.II:561).

Outro indício do fortalecimento da ideologia das letras na colônia surge através da idéia de que dominar uma gramática tupi é uma forma de saber a língua. Este é o caso de Luis Grã, que consta nas crônicas jesuíticas como um não "língua", ao usar intérpretes nas suas viagens e ao realizar os sacramentos em tupi por meio de falas decoradas. Entretanto, em 1560, ele é identificado como conhecendo tupi pelo fato de dominar a sua gramática [17][17].

5. Conclusão

As questões sobre a procedência dos intérpretes jesuítas e do uso da gramática tupi na Companhia de Jesus levam a propor uma diferença na forma de conhecimento do tupi nos dois primeiros colégios dos jesuítas no Brasil, São Vicente e Salvador. O período em que os jesuítas se concentraram em São Vicente , o tupi adquirido pela missão é predominantemente de domínio oral, enquanto na Bahia se institucionaliza seu uso escrito, surgindo ali maiores reflexos da ideologia das letras, pelo papel relevante que teve a gramática de Anchieta.

O colégio de São Vicente representou o momento do domínio do tupi pela oralidade, cujo interesse era criar "senhores da fala" cristãos. Ali, o conhecimento do tupi se deu pelo recrutamento de colonos "línguas" para os quadros da ordem religiosa ou pela exposição dos órfãos a situações de uso oral do tupi.

O Colégio da Bahia parece ter tido uma formação diferente à de São Vicente, diante do fato possível do tupi não ser a língua franca na cidade, sede administrativa da colônia. Foi lá que se institucionalizaram  aulas de tupi em 1572, transformando o colégio em local de aprendizado da língua. Ali, a língua brasílica se incorporou ao programa escolar, teve um professor para essas funções e a gramática se tornou seu modelo de ensino, tanto para os padres da metrópole como para os próprios línguas.

O uso obrigatório da gramática tupi no Colégio da Bahia, em vez de apontar um maior realce daquela língua na vida interna da Ordem, mostra, na verdade, uma maior importância da gramática latina na formação dos jesuítas. A obrigação de aprender tupi pela gramática revela mais a institucionalização do latim do que da língua brasílica.

Em suma, a oposição entre a oralidade tupi, representada pelos intérpretes, e a escrita tupi, por parte da gramática, nos leva a uma interpretação sobre o funcionamento da diglosia tupi versus latim. Num primeiro momento, houve uma maior importância no interior da Ordem do conhecimento da língua indígena, o que fez com que a missão abrisse mão do conhecimento de latim para receber no seu quadro aqueles que dominavam apenas o tupi, chamado do "latim da terra"(LEITE, 1957:418). Com o aparecimento da gramática tupi, se requeria saber latim para ser capaz de usá-la.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Maria Cândida Drumond Mendes

1982    Política de lenguaje en Brasil colonial. Tese de mestrado. Escuela Nacional de Antropologia e Historia. México.

1986    "Um caso de política lingüística: a questão do intérprete e do discurso religioso no Brasil colonial", Amerindia 11:69-77.

CARDIM, Fernão

1939    Tratado da terra e gente do Brasil. Brasiliana, vol 168. Biblioteca P edagógica Brasileira. Companhia Editora Nacional. S P , 2ª edição.

CORTESÃO, Jaime

1955    Fundação de São P aulo, capital geográfica do Brasil. Livros de P ortugal. Rio.

FIGUEIRA, Luis

1878    Grammática da língua do Brasil. Fac-simile da edição de 1678. Leipzig . P ublicado por Julio P latzman.

LEITE, Serafim, S.I.

1937    Páginas da História do Brasil. Biblioteca P edagógica Brasileira. Coleção Brasiliana n.93.

1950    História da Companhia de Jesus no Brasil, Instituto Nacional do Livro. Rio

1956-57-58 Monumenta Brasiliae. Monumenta Historica S.I. vol 79-80-81. Roma.

MAURO, Frederic

1961    Le Brésil au XVII siécle, documents inédits relatifs à l'Atlantique P ortugais. Coimbra.

MIGNOLO, Walter D.

1992    "On the colonization of Amerindian languages and memories: Renaissance theories of writing and the discontinuity of the Classical tradition". Comparative studies in society and history, vol.34 n.2, April , 301-330.

P EIXOTO, Afrânio (org.)

1931    Cartas avulsas de jesuítas (1550-1568). Cartas de Letras Jesuíticas II. Rio de Janeiro. P ublicações da Academia Brasileira.

 


 


http://www.vjf.cnrs.fr/celia/FichExt/Am/A_19-20_01.htm

 


[1][1] Agradeço a leitura e comentários de Adélia Rodrigues, Bartolomé Meliá, José Horta Nunes e Maria Carlota Rosa e P aulo Melo e Alexandre Gerhardt pela elaboração da tabela.

[2][2] Ver quadro em anexo. A lista inclui todo jesuíta mencionado como língua ou como tendo algum conhecimento do tupi.

[3][3] "se não fôssem eles [os sujeitos nascidos no Brasil], mal se poderia conseguir o fim que cá se pretende; porque como a língua brasílica lhes é a eles quási natural, tem muita graça e eficácia e autoridade com os Indios para fazer-lhes práticas das coisas da fé e lhes persuadem tudo o que é mister para tê-los quietos e contentes [....] e os que vem de P ortugal, ainda que aprendam a língua, nunca chegam a mais que a entendê-la e poder falar alguma coisa, pouca, para ouvir confissões, nem acabam tanto com os Indios como os outros, que sabem seus modos e maneira de falar, e embora estes P ortugueses, naturais de cá, nao sejam tanto para reger Colégios, especialmente em cargos de reitores e provinciais, não tenho por coisa de menos pêso e importância isto de atender à conversão e doutrina dos Indios, como eles fazem de contínuo e com muita edificação" (LEITE, 1950:v.II:432-433).

[4][4] "De allá (Europa) nos embien quantos estudiantes moços pudieren para acá estudiar en nuestros collegios, porque en estos no ay tanto peligro, y estos juntamente van deprendiendo la lengua de la tierra, que es la más principal scientia para acá más necessaria y la experiencia a mostrado ser este util medio, porque algunos de los huérfanos que de P ortugal embiaron, que despues acá admittimos a la Compañia , son ahora muy útiles operarios" (NÓBREGA, 1561 apud LEITE, 1958:363).

[5][5] " P olla qual razão nos obriga Nosso Senhor a mais presto lhe socorrermos, maiormente que nesta Capitania [São Vicente] nos proveo de instrumentos para isso, que são alguns Irmaos lingoas, e por estas razões nesta Capitania nos ocupamos mais que nas outras" (NÓBREGA 1553 apud LEITE 1957:16).

[6][6] "as letras em toda parte são muito necessárias e mais numas partes que noutras. No Japao são muito necessárias, porque é gente de melhor saber e subtil engenho... Mas para cá, para esta gente do Brasil, poucas letras bastam. E quem nesta terra sabe a língua dela é aqui teólogo" (VIEGAS, 1585 apud LEITE, 1950,v.IX:385).

[7][7] "... porque saiba V. P . que muitos a queiram aprender [a língua da terra] e saber e dar-se a ela: tudo era darem-se às letras e serem pregadores dos portugueses, e subir ao púlpito a pregar aos brancos e nao se lembravam desta pobre gente de lhes pregar em sua língua" (VIEGAS, 1585 apud LEITE, 1950:v.IX:384-385).

[8][8] "Un poco antes de la mañana en que lo avían de matar, um indio de P iratininga christiano muy estimado entre todos hizo una habla al derredor de las casas (como es su costumbre) amonestando a los suyos que dexassen a los Hermanos hazer con el enemigo todo lo que juzgassen serle necesario para su ánima" (LEITE, 1958:261).

[9][9] "Hazen mucho caso entre si, como los Romanos, de buenos lenguas y les llaman señores de falla, y un buen lengua acaba con ellos quanto quieren, (y les hacen en las guerras que maten y no matan, y que vayan a una parte a otra, y es señor de la vida y muerte) y les oyen toda una noche y a veces tambien al dia sin dormir ni comer, y para le experimentar si es buen lengua y eloquente, se ponen mucho con el, toda una noche, para le vencer y cansar, y si no la hazen, le tienen por gran hombre (y lengua). P or esto hay predicadores entre ellos muy estimados que los exortan a guerrear, matar hombres y hazer otras hazañas desta suerte" (MAURO, 1961:163).

   "Havia nesta 'poblazón' um principal mui antigo y a quem os da Ilha tem grande credito, porque lhe chamam senhor das falas" (LEITE, 1957:408)

[10][10] " P or todos os lugares e povoações que passavamos me mandava pregar-lhes nas madrugadas, duas horas ou mais; e era na madrugada porque então era costume de pregarem os seus principais e P agés, a que eles muito creem" ( P ero CORREA, 1551 apud LEITE, 1956:220)"Y dos horas dante mañana los tornamos a llamar, porque en aquel tiempo están más quietos que en outro, y entonces les predicamos por sua lengua las cosas de su salvación, y ansí deciéndoles en qué han de creer; y todos están mui promptos" (Vicente RODRIGUES, 1552 apud LEITE, 1956:411).

[11][11] [Navarro] "começava a despejar a torrente da sua eloquência, levantando a voz, e pregando-lhes os mistérios da fé, andando em roda deles, batendo o pé, espalmando as mãos, fazendo as mesmas pausas, quebras e espantos costumados entre seus pregadores, para mais os agradar e persuadir" (VASCONCELOS, apud LEITE, 1950:v.II:299)

[12][12] "[introduzir nas aldeias dos indíos] a maneira de pregar que se usa entre os brancos, para que, em tudo, vão se perdendo os costumes dos seus antepassados e afeiçoando-se aos nossos" (1574 em LEITE, 1950:v.II:300).

[13][13] "... acrescentei, não só todas as exortações necessárias nos passos ocurrentes & hum copioso confessionário: mas tambem lhe ajuntei tudo o que pertence à ordem de Baptizar, casar, & ungir, & enterrar conforme ao Ceremonial Romano; com suas declarações & amoestações na lingua, tudo muito importante para os que se ocupo na conversão" (LEITE, 1950:v.II:560).

[14][14] "Não a ponho em arte porque não haa quá a quem aproveite, somente aproveito-me eu della, e aproveitar-se-ão os que de lá vierem, que souberem grammatica" (ANCHIETA, 1555 apud LEITE, 1957:160-161).

[15][15] "os mais delles [moços indígenas da Escola] sabem a doutrina todo e sabem o esencial da fee, que em preguntas à maneira de dialogo lhes ensinão na sua lingoa" (1556 em LEITE, 1957:269).

[16][16] "Agora começo polos nominativos por a arte para poder aprender" (Antonio PIRES, 1560 apud LEITE, 1958:310-311).

[17][17] "(Ele) é mestre della por saber explicar suas regras melhor do que todos, postos que sejão muito boas línguas" (PEIXOTO, 1931).